Sem título




  Todos os dias quando ela acordava, esticava-se ainda na cama. Nua, como dormia, andava pelo seu quarto tentando juntar os pedaços da noite passada. Via por todos os lados sapatos. Ela morava só em um pequeno apartamento. Todos os cômodos seguiam o mesmo padrão de cor: carvalho. Móveis claros, parede clara, muitas janelas. Em cada cômodo, dos três, havia sapatos. Espalhados pelo chão que seguiam o tom dos móveis, alguns em cima dos móveis, outros enfileirados. Era notável a quantidade de sapatos para quem tinha apenas dois pés.

  Ela colocava um roupão de tecido leve que batia mais ou menos no meio de sua coxa. Colocava chinelas de borracha, dessas que vemos nas propagandas, colocava água na cafeteira. Ia para o banho e lá passava 30 minutos sem se mover embaixo do chuveiro. Seus cabelos molhados cobriam suas costas. Os cílios grandes aparavam gotículas de água. Uma pele branca. Cabelos tão claros quanto escuros. A luz do banheiro era a de mil sóis, e só deles vinha luz. Porta aberta. Chão molhado.

  Sai ela do banho sem toalha e secando seus cabelos com uma toalha de rosto. Dentes escovados, cabelos desembaraçados, nua. Ela coloca o mesmo roupão de fino tecido, e vai até a cozinha pegar seu café. Enche uma xícara que beira a semelhança de uma caneca. Senta-se próximo à janela da sala. O dia está começando a acordar. Ela já está acordada há dias. Por uma grande placa de vidro esverdeado ela ver a cidade começando sua dança. O céu que escorre pelo asfalto fede a morte. Ela olha para o céu que está com um azul enegrecido e nuances púrpuras. Sentada na sua cadeira ela se recorda das palavras de um velho trovador, proferidas poderosamente há nove anos atrás. Ela espera que suas palavras se tornem realidade enquanto está olhando apenas pela janela.

  Então os céus arregimentam uma grande tempestade. As cores que estavam tão escuras se fecham no cinza mais escuro que já se viu. Ela da cadeira, levanta seu olhar e enruguesse a testa como se buscasse respostas nas nuvens. Cogita a possibilidade de entender o que o maldito trovador disse há anos. Então espera silenciosamente, como se os raios fossem as trombetas de algo que está perto. O inicio de um ritual. Precipita então do céu a chuva mais leve que houve relato. As pessoas da rua nem mesmo percebem o que acontece. A placa de vidro está lavrada de gotas de chuva.

  Ela toca o vidro ainda em busca de respostas. Ela continua a esperar e a chuva vai embora. O despertador toca. Ela sai para trabalhar na escola que conseguiu fundar com ajuda da mãe e da sua madrinha rica. Todos os dias ela vai à escola e toca algumas músicas que fez quando mais nova, lê com os alunos... Dança. Ela sorrir tanto que dá agonia. Seu cabelo está tão grande como nunca esteve. Seu corpo continua o mesmo. A imagem do céu em águas ainda não saiu da sua cabeça, assim como tais palavras. Ela vai pra rua, bebe e sorrir mais um pouco. Volta pra casa.

  Todos os dias quando ela acorda, estica-se ainda na cama. Nua, como costuma dormir, ela fica tentando juntar os pedaços da noite passada, em busca da resposta da pergunta que ele fez, antes de entrar no trem.

Invictus



Do fundo desta noite que persiste
A me envolver em breu - eterno e espesso,
A qualquer deus - se algum acaso existe,
Por mi’alma insubjugável agradeço.
Nas garras do destino e seus estragos,
Sob os golpes que o acaso atira e acerta,
Nunca me lamentei - e ainda trago
Minha cabeça - embora em sangue - ereta.
Além deste oceano de lamúria,
Somente o Horror das trevas se divisa;
Porém o tempo, a consumir-se em fúria,
Não me amedronta, nem me martiriza.
Por ser estreita a senda - eu não declino,
Nem por pesada a mão que o mundo espalma;
Eu sou dono e senhor de meu destino;
Eu sou o comandante de minha alma.

William Henley

The end was always closer


Queime trimensalmente as cartas que você escreveu e não mandou. Jogue seu celular em uma pia cheia de água e não anote os antigos números na sua agenda. Tire do seu guarda-roupa as roupas que você não usa há 1 mês. Se em 1 mês você não a usou, não usará nunca mais. Corte seu cabelo daquela forma que você não gostava há 5 anos atrás. Fique em silêncio por uma hora. Se sente de frete ao Sol até que sua pele esteja perfeitamente aquecida. Vá para auto-estrada e ultrapasse o 7 do painel do carro. Ligue o som o mais alto que puder. Pule na sua cama. Compre para as crianças mais próximas pistolas aquáticas. Brinque com elas. Aproveite a chuva para fazer uma leve caminhada. Pinte seu quarto. Encha o copo da sua bebida favorita e ofereça a alguém. Escolha uma pessoa para contar a verdade sobre si mesmo. Observe tudo o que te assusta e reúna-os em você. Se vista de palhaço se for preciso. Depile suas pernas com cera quente. Não se engane com você mesmo. Ame-se. Faça um vestido e dê de presente para alguém. Certifique-se antes que irá caber na pessoa. Saia com seus melhores amigos. Escolha um melhor amigo para pegar a estrada com você, desde que a música do rádio seja a única coisa que vai falar. Passe 1 mês sem usar sua droga favorita. Corra muito. Há quem diga que é recompensador ultrapassar os seus próprios limites. Não se preocupe com problemas, nem se surpreenda com eles. Problemas lhe acompanharão até a morte. Pra ser sincero, a morte é o menor de seus problemas. Converse com um estranho sobre o que você mais gosta. Invente histórias. Seja lunático. Roube algo desinteressante. As pessoas estão sempre roubando. Cuide de sua casa. Mantenha-na pura e clara. Pinte seu cabelo. Use uma maquiagem diferente. Liberte-se de seus preconceitos. Seja aquilo que você olha torto na rua por um dia. Ouça a música que você não gosta. Fique uma noite sem dormir para ver o nascer do Sol, é uma maravilha. De vez em quando, fuja da sua casa. Fique novamente em silêncio. Procure seus cadernos antigos. Tire um dia para tirar fotos diferentes. Procure aquilo que ninguém viu. Grave um vídeo de uma loucura. Tome banho de mangueira. Jogue futebol e ande de patins. Deixe seus cabelos sujos por alguns dias. Deixe sua barba crescer. Escove os dentes. Tome um banho gelado. Mastigue gelo durante o dia. Aprenda uma nova receita. Diga o que quiser. O que quiser, quando quiser. Não tenha medo. Não tema o futuro. Esqueça o seu passado. Aprenda a perdoar para ser perdoado. O que aconteceu nunca mais acontecerá. Não se tranque. Abra-se, tem um mundo enorme lá fora esperando por você. Volte a fazer o que você costumava fazer. Não se acanhe com os "nãos" que surgiram na estrada. A vida é mais "não" que "sim". Queira ter filhos. Nada que disseram de você é verdade, só aquilo que você acredita que é. A sua maior arma é sua voz. Use-a. Não discuta com pessoas levianas. Não se abra para pessoas que parecem confiáveis. Seja algumas vezes desonesto. Seja algumas vezes mau. Seja algumas vezes perverso. Seja também honesto, confiável, bom e gentil. Tenha grandes sonhos. Aprenda a sonhar novamente. Não se esqueça de você em nenhum segundo. Só mantenha aquilo que te faz bem por completo. O que te faz mal, mesmo que acabe com apenas 1% de sua felicidade, deixe de lado já. Ser 99% feliz não é ser feliz. É ser infeliz. A felicidade é a plenitude. Ande devagar na rua. O tempo pode calçar seus pés ou sua mente. Escolha. Não tema suas escolhas. Não julgue muito. Agir com o coração requer sabedoria. Se não tem, não faça. Levante cedo e vá caminhar. Por mais feia que seja sua cidade, o céu continua lindo.

A Saudade


Sinto falta do que havia entre nós. Era possível sentir no ar. Não perceber ou ver. Se sentia. Algo grande, forte, quente, vermelho e azul. Eu o queria tanto. Éramos nós artistas de um mesmo picadeiro. Fazíamos da noite nosso lar. Entre grandes e pequenos só havia eu e você e o que construirmos para nós. As coisas faziam sentido no meio da loucura que vivíamos. Nossa liberdade era tamanha que nos sentíamos constantemente andando em parapeitos e viadutos. O mundo era pequeno para nossos pés. Nos beijos, colocávamos ali as palavras que escapavam pela língua. Nos risos, colocávamos a satisfação de sermos o que éramos. Nos dias difíceis, deixávamos claro o que poderia fazer nos separar. Dia após dia, esperando que o tempo desse a ordem, esperávamos pelo futuro que nunca nos chegou às mãos.

Mas com o passar do tempo, os risos já não mostravam nada. Os beijos não se chamavam. Os dias difíceis nos visitavam sem antes telefonar. O passado assombrava-nos na noite que um dia foi nossa. O canto e o violão pareciam desentoados e a música já tinha ido embora de mala e cuia. Nos deixávamos atordoados e confusos com a dúvida criada por nós. Eu via erros em você e em mim só havia o descaso. O peso de não confiar nos guiavam para pontes que já tinham sido queimadas. O seu ego tripudia em mim. Minha ignorância te olha ironicamente. O cinismo nos servia na cama. Os caminhos trilham para o desencontro. Gritos e noites separadas. Lágrimas com teor de álcool de 78% molhavam nossas roupas. Sentíamos as mesmas dores, e estas, eram criadas por nós mesmos.

Aos pouquinhos, aos pequenos pedaços, não vimos mais um motivo para sermos o que éramos antes. O que havia no ar foi extinto e a razão é desconhecida por todos. O que nos resta são mais anos e anos nos arrependendo do que poderia ter sido algo fértil. O sexo estava morto e o nosso negro amor também. Morremos em pequenas doses, em meio os sorrisos que já não se faziam presentes. Como amantes predestinados à morte antes do amor. Como histórias do século XII. Como romances de Carnaval. Como romances que acabam quando todos os confetes estão no chão.O que havia entre nós, agora é como um fantasma de algo que nunca fomos por completo. Se foi. Só nos restou a saudade. E isso é uma loucura... tchurutchutchutchu...

As rosas não falam


  Ela foi encontrada sentada numa praça, debaixo de um pé de planta. É estranho como aquela árvore estava enorme. Enorme. Ele a viu ali sentada e como outrora, sentiu o que ela sentiu. Ela então o olhou nos olhos e ele desconcertado se aproximou. Como de costume, ele falou algumas mentiras depois de beijar-lhe a mão. Ele entendia completamente o que ela falava e sabia das mentiras que ela contava. Mas tudo bem, tudo estava bem. Ele estava com a roupa mais bonita. Ela estava com a roupa de sempre. Era carnaval e todos estavam preparados para aquela noite. Ele então tirou do seu bolso uma máscara cor de vinho e entregou na sua mão, com um sorriso mascarado disse que era pra combinar com seus olhos.
  Ele saiu com uma preocupação arraigada em seu peito, ela ficou com a solidão que estava acostumada a lidar. Do céu, chovia confetes e pintavam o chão de concreto. Ele no meio de todos, olhava para a pequena que estava sentada embaixo da árvore que tinha estranhamente crescido. O vestido branco que era característico dela, estava molhado e com uma leve transparência. Não se sabia se o que molhou foi o orvalho da árvore ou outra coisa. Mas de certo estava encharcado.
  Como de costume, ele a tirou pra dançar. Vê-la tão quieta, era de certa forma assustador. E como de costume, desceu do céu uma chuva tão fina e tão cheia ainda... algo sobrenatural. Eles valsavam a mesma música a cerca de um ano, sabendo que mortos estavam por isso. Todos paravam para os olhar dançando fora do ritmo. Como de costume ela deitou sua cabeça em um de seus ombros, e ele encaracolava seus cachos rúbios. Como sempre, ela estava embriagada e ele ainda era um cavalheiro. Ele notou que seu coração estava de certa forma, arritmado. Isso em geral acontecia. Chegou perto do pescoço, a abraçou forte, e dessa forma foi dito sem ninguém ouvir "Just Breath". A apertando contra si, ele entendeu o que estava acontecendo e ela também. Ele perguntou tranquilamente:

"Minha menina, o que há com você? Que marcas são essas em teu corpo? O que fizeram aos teus olhos? Onde está tua companhia e pra onde teus pés caminham? O que houve com tua voz, meu rouxinol? Onde está o teu vermelho? Me fale sobre teu vestido branco, como ele ficou assim. Por que não me disse o que estava acontecendo com você?"

  Como de costume, ela sorriu para ele e disse que estava bem. Naquele momento, tanto aquela donzela sem alguma reputação ou valor, quanto aquele boêmio de boa família, entenderam que era mais que um adeus. Era a canção de um funeral. Eles então deixaram morrer um no colo do outro.