Samba

Se eu mostro as pernas e danço na noite, os burburinhos correm pelas paredes do salão. Aí eu mostro que não são apenas duas pernas quentes que sabem embalar a música e digo o que penso, e com esparadrapos e panos tentam silenciar. Se eu canto Caetano e Gil, traí o rock'n'roll. Se eu canto blues, sou infeliz. Se não canto, estou me sentindo superior.
Se eu frequento, estou forçando a barra. Se eu me afasto, estou doída por bobagem. Se me dou à qualquer cara, não presto. Se me guardo para um só, sou tola. Se encaro todos e dou resposta, sou ríspida. Aí se me arrependo e peço perdão, e sou falsa.
E se aquele cara que comeu todas também quer me comer, sou a puta. E se aquele cara que traiu todas quer voltar, palmas e colos. Quando sou preta, sou fingida. Quando branca, sou jogada aos cães. E se sou multicolor, eles são vermelhos e sou tratada como do contra.
Se eu saio para a boemia esquecendo quem eu realmente sou, sou vagal e sem futuro. Se trabalho, estudo e me reservo em casa, estou perdida e dando valor à futilidades.
Se hoje eu não gosto de maçã e amanhã eu como uma, não sei o que quero da vida. Se quero sair do ciclo vicioso de ver defeitos nos outros e aprender com os meus, eu já não sou como antes.
Falam de meu sorriso e olhos na frente de minha cara. Falam de meu pêlos e apelos nas mesas de bar. Falam da minha arte e dom quando me leem. Contam meus medos e dores durante o almoço para quem quiser escutar.

"Racistas, parternalistas, acionistas! Prefiro os nossos sambistas..."



Andei tanto tempo na rua que minha pele tinha a cor do chão. Os olhos grandes foram os únicos que eram lavados todos os dias. Choro e vela antes de dormir. Um pouco de álcool pra engrossar a capa e um pouco de rispidez para tirar as fraquezas de perto.
Dormi tanto tempo só e implorando calor que meu corpo acostumou-se com a frieira. Eu tinha a forma e solidez dos prédios que me rodeavam. Um sorriso para enganar a dor e uma vida pra esquece-la.
Eu conheci tantas pessoas que esqueci de conversar com meu reflexo nos vidros dos carros estacionados perto da calçada. Bons e ruins me rodearam. Todos sumiram antes que eu estendesse a mão.
Até que segui para a casa bonita. De dia sempre amarela e à noite com cor de natal. Um grande jardim e um quintal aberto. Móveis velhos com cheiro de eucalipto e menta. Coisas novas e tecnológicas para todos os lugares.
Convidada a entrar, demorei tanto tempo para me deixar ser levada pela moradia nova que tinha música no violão. A sala colorida e luzes presas na parede eram o que eu mais gostava. Mapas e adornos de prata pendurados me hipnotizavam... Poderia passar a vida só olhando os detalhes.
A minha cor já era vermelha novamente e não era ruim dormir. Não tinha muitas pessoas, inclusive a Dona Solidão que sempre se propôs me fazer companhia nas sextas à noite. Eu era muito feliz.
Dentro da casa havia, porém, uma pequena caixa de carvalho e fechadura de ouro. Sempre aberta, convidava uma espiada, uma olhada inocente.
Papeizinhos amassados, escritos à punho, tinha cheiro de OBoticário. Fotos lindas em preto e branco, enfeitadas com recadinhos e desejos de um futuro que daria inveja ao "felizes para sempre". Cartas e músicas rascunhadas em folhas de coração. Sangue, suor, lágrimas, beijos...
Eu descobri então que essa casa pertencia a um 'nós' em que não me incluía, apesar de ser um. Eu passei algumas horas dormindo para esquecer e fazer de conta que não vi nada. Eu tentei sonhar, mas o trem parecia ser um ótima alternativa.
Eu peguei minhas poucas coisas, olhei ao redor já com saudade. Eu quero ir embora, mas me assusta tanto voltar a ter cor de chão e ter frio. Me assusta tanto a risada daquela senhora. Não tem mais tintas pra eu cantar de frente para os faróis...
Eu não sei porque ela estava lá, mas de alguma forma eu não podia tira-la dali e com ela eu não podia ficar.


bandeira branca

Como criança que se afunda na banheira ou que em dias quentes se propõe a mergulhar sua cabeça na bacia de água de torneira, eu me deixo imersa nesse gostoso momento.

Eu me permito dançar hoje e dou a mão para caminhar, um só caminho. Deixo que os dias entrem pela janela amarelos e, agora, já é tão bom de acordar e preguiciar - ao mesmo tempo.

Eu vejo as luzes amarelas e as cores saltam formas de animais pra comigo conversar. As músicas agora parecem ser velhinhas e passam o dia me aconselhando o melhor.

E eu posso beber... Uma ou seis taças de vinho. Já não é rota de fuga. Agora a maçã é boa de comer até os carocinhos.

Eu me desafiei sair da concha que tanto me abrigou com rancor e dor e chumbo, e me descobri mais forte quando deixei meu interior mole se deslizar nos lençóis de manhã. Como caranguejo de andada que se esconde na areia, mas se permite ser tocado.

Com a simplicidade de quem pula na cama eu abro espaço para a vida caminhar. Ela caminha como bebê de três anos que é quase um adulto. Tropeça, mas corre contra o vento de boca aberta e língua solta.

Já nem dói o medo, já nem é grande. É pequenininho agora e só dá o frio na barriga. E o peso, hoje tem pernas e consegue andar, eu já não preciso carregá-lo. Hoje eu tenho passarinhos.

Eu cultivei, pela primeira vez, a verdade e a força. Hoje eu colho amigos e paz. Estou como criança que dorme na cama da mãe quando chega da escola: des-pre-o-cu-pa-da.

Sem tinta no rosto, hoje o meu espetáculo sou eu, em sessões de eternidade à eternidade. Sem sorriso falso, hoje meu hobbie é dançar na mão dos meus. Sem armaduras, hoje o vento leva meu corpo para o mar.

Onde morreu a bela rosa vermelha, cheia de espinhos, nasce lírios azuis cor de céu. Nasce uma nova seara, um novo campo de morangos se espalha na planície.

Mas sempre haverá café e a loucura é um prato que se come todas as manhãs com cereal. Desta feita, a loucura vem de dentro pra fora e não o revés. Mas sempre haverá café.

O que ainda me dá rasteira é o passado, mas os meus presentes sempre me segura. Eles sempre me seguraram. Até mesmo os mais desvirtuosos souberam me pegar pela mão - mas tudo tem seu tempo de cura.

Hoje já não há tristeza e a lágrimas que rolam é por saber que eu consegui e não foi sozinha. É por saber que posso abraçá-los no fim do dia. E sei o que é ser feliz por deixar a felicidade na caixinha de alguém e se alegrar pelo crescimento de alguém.

Meu ventre agora parece lar. Teu peito é o meu lar. Meus amigos são o meu lar. Meu lar é meu lar.

À felicidade, flexibilidade, amorosidade, amizade, confiança, coragem.


- Há tempos que não a vejo. Há tempos que não ouço a sua voz. Seus cabelos caramelo moldurando o seu rosto e seus lábios cor de romã. Será que ainda faz vitrais e ouve The Doors?

Eu lembro bem de sua cintura fina e de seu quadril cubista. Olhos de cor indefinida e com o formato que as muitas águas do mar fazem com o fundo de areia. Uma voz que era possível reconhecer ao longe e uma presença que não poderia passar imperceptível.

O coração frio batia como rugidos de leões e eu via o veneno escorrer pelos cantos da boca. Um cigarro atrás do outro. Um pouco de coca, um pouco de álcool. Algumas horas na cara e um sorriso embriagado. Beber até que não houvessem mais lembranças e porquês. Xingar até que assustassem todos a ponto de estar só. Fugir e fugir como se o chão fosse caindo atrás dos seus pequenos pés. No fim da noite, arrepender-se e cansar-se pela a vida que resolveu correr mais que as pernas. Sonhar com dias amarelos. Enganar-se e convencer-se de que não lhe cabia mais.

Marcada nas costas com o desprezo, abandono, inveja e dor. Marcada na cara com a humilhação, a traição e o rancor. Uma menina com olhos de soldado e uma língua de sufocar a respiração. Mãos pequenas acostumadas a esmurrar paredes e secar as bochechas. Olhos acostumados à chorar e fingir atenção. Boca acostumada a gritar histórias e calar-se com o não.

A maldição da intolerância, a praga da cegueira. Acostumou-se na desconfiança e contava mentiras para se alegrar, como palhaço que pinta o rosto. Doava seu corpo na desculpa de não fazer diferença. Sentava nos colos, beijava bocas, deixava-se levar. "One night stand pra não morrer de amores. Uma fodida só pra eu não me machucar", pensava ela no seu antiromantismo forjado de covardia.

No chão ervas e pós seguram os seus pés para mais uma noite. Uma ou duas milhas são nada diante do tanto que ela corria. Corria como quem foge da cruz, do mundo, de medo.

Quando já cansada, mostrava um pouco de si, chorava. Novamente enganada, fazia-se vítima e praguejava o mundo. A loucura a fez linda. Os olhos borrados e o esqueleto à mostra pareciam rápidas soluções para a dor que sentia. Quando a tristeza é bela, é poética, é música...

Ela era assim. Fazia vitrais e ouvia The Doors quando a lua estava crescente e cheia. Quando minguante, o asfalto era coberto pelos cacos coloridos. Quando nova, ela ressurgia como fogo em brasa fria dando a mais bela e pura parte de sua alma.

Ainda bem que não a vejo. Ainda bem que não a vejo mais.


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desejinhos

eu sinto a necessidade de me perpetuar em palavras. faço isso para que quando você leia, eu deixe sua mente impregnada com meu batom. eu não prometo que sempre serão palavras bonitas em tons pastéis, mas serão o desenho do meu silêncio.
eu tenho a necessidade de eternizar em mim as sensações. para me lembrar de quanto sou forte para enfrentar os problemas, quanto sou fraca para pedir colo, o quanto sou grande para passar por cima de tudo e o quanto sou pequena para usar a sutileza.
tenho urgência por viver em música e desentoar nos azuis e vermelhos. é do meu feitio me deslizar nas cordas de violões elétricos e dançar em notas do arcodeon.
eu tenho sede pela mudança. tranformar, recriar, deformar, remontar. bagunçar o mundo pra relembrar que a quietude é carinhosa e que a calmaria é uma boa amante.
eu tenho a precisão de me afundar na areia, como caranguejo, pra que quando eu saia o mar esteja mais azul.
Olha só, que coincidencia! São cinco horas. Onde você está, pequena? Onde está o leão que você tanto diz ter?
São cinco horas, e por que você continua contando minutos? Onde foi parar a tua segurança, a tua beleza e o teu sorriso?
 Me fale mais sobre como destrói tudo o que ama? Hey pequena, pare de chorar e me explique como é mendigar amor e se apegar ao primeiro que lhe toca? Como é se agarrar com todas as forças à mínima esperança de felicidade?
Me diga alguma coisa sobre como foi ter sido usada, humilhada, pisoteada todos esses anos? Como se faz para fingir sorriso no picadeiro escondendo lágrimas com a maquiagem?
Por que você me procura nas noites quentes de verão? Por que me usa quando tem vergonha? Por que me esconde no teu cigarro?
Ora... Cadê a armadura que você jura carregar? Cadê a força que você jura ter? Cadê a garra que você finge para os outros?
Até quando vai criar medos pra justificar sua fraqueza? Quantas noites vai aguar o bom do amor?

Incapaz, fria, insignificante. Traíra, suja, podre. Vadia, piranha, vagabunda.
- Me diz uma coisa boa?

amar gado

Ela veio em sonho me trazer nas suas mãozinhas pequenas a porção de comida que tenho amargado na boca durante vinte e poucos anos. Seus cachos negros que hoje já não são, sua voz fina subindo as escadas e com passos delicados me tirou paz e sono.

E de suas pequenas mãos eu comi, como se o sabor amargo fosse pintar da cor que eu já tinha perdido. Quem sou eu pra tentar viver sem aqueles bolinhos?

Ela veio e se deitou comigo, me sufocando com seus cabelos, com suas canções de ninar, com as cartas. Veio sutilmente, tão sutilmente que  nem vi quando caí em sua teia.

E depois veio ele pra me lembrar os traumas que hoje viraram piada. Parece piada. Parece uma piada. Bastou um olhar contra luz pra ver seus olhos me seguirem e me rasgarem o corpo e as costas. Veio ele me fazer lembrar do gosto que tenho amargado no ventre por anos.

Veio impactante. Veio como um furacão.

E você...

Eu sabia, eu até me enganei um pouco, mas eu sabia. Isso não é pra mim. Não é pra quem foi criada comendo migalhas do chão, comendo o amargo. Por mais que o doce seja bom, o amargo sempre me foi servido como se serve ração para os cães de caça, como os veados se servem a boca dos leões.

E falta voz para gritar, falta lágrimas nos olhos secos, faltam sorrisos pra fingir. E eu, que me julguei forte, eu que me senti grande o bastante pra falar de quem mendiga amor, rastejo atrás desse sabor pra me sentir viva.

Ao mesmo tempo que dele eu fujo, ele parece reconhecer meu cheiro de longe e me amarra em joelho. E eles virão me perguntar o por que da frieza, o por que do silêncio... 'O que houve, meu bem?'. Jamais se lembraram... É como quando você olha pra ela e tem vontade comer. Ou se amarra em consolar outras lágrimas...

tell me why

Hey Garota


Ela chegou e parece estar tão linda. Como pode parecer tão linda com os olhos marejados? Tão azul de lábios laranjados como os de criança. Ela chegou tão linda.
Ela só quer deitar comigo. Ela só quer mais uma noite comigo. Ela só quer um abraço antes de dormir.
Eu não entendo por que ela não se vai. Não entendo por que ela se agarra às minhas pernas. Quando eu posso respirar, ela me sufoca.
Por favor, querida, faça as malas e pegue o trem das três.

sinta-me

 -

Ela parece tão cansada às vezes. Me olha sem nada dizer, parece querer me deixar, parece querer deixar para trás nosso amor. Às vezes, me olha tão triste que me deixa triste assim.
Ela às vezes parece tão apagada, apesar de algumas vezes me dar sorrisos de graça. Outras vezes, engole o choro na cama e me conta histórias quaisquer.
Ela parece pequena às vezes, se diminuindo nos meus lençóis. Às vezes me assusta quando seus olhos me olham sérios. Eles me deixam curioso quando forçam a falta de expressão. Tem horas que ela ignora tanto minhas alegrias que nem a sinto em mim.
Ela parece impenetrável a ponto de me afastar, quando não tem tom de voz pra me falar coisas simples.
Uma vez doce, uma vez amarga. Agridoce.

--

Às vezes eu estou tão cansada. Eu o olho e as palavras não saem. Tudo o que eu quero é ficar. Às vezes eu sinto tanto as outras dores que não consigo disfarçar.
Eu fico às vezes apagada, mas ele me dar motivos pra sorrir de verdade. Outras vezes, eu quero tanto só conversar, mas temo pelo peso. Engulo as lágrimas e desvio o assunto.
Às vezes eu me sinto tão pequena, quero só me esconder nos lençóis. Às vezes, eu tenho medo e isso me esfria. Às vezes a covardia me tira a expressão. Tem horas que além da brincadeira, quero beijos cor de dia.
Eu pareço impenatrável e temo o afastar. Eu só não me acostumei a deixar alguém me bagunçar, me olhar dormir, me querer bem e saber minhas pintas.
Uma vez medo, uma vez beijo. Amor.


Era noite e, no meu bosque, a Lua coloria o chão de prata. A grama estava úmida, mas não havia nuvens no céu. Eu, de vestidos azuis, corria entre minhas gargalhadas, fazendo corredores entre as árvores. Meu peito palpitava enquanto os meus olhos ficavam vermelhos. As pernas já fracas da brincadeira, mas com um espírito vivo.
    Era noite, mas parecia tarde. A minha brincadeira não tinha hora pra acabar. E correndo por todos os lugares do meu jardim, ouvi uma voz me chamar. "Ei, Anne. Venha aqui. Há algo que quero dar pra você", dizia. Entre gargalhadas e falas com o imaginário, fui seguindo a tal voz que me chamava. Dentro de mim, a ansiedade já não cabia.
    Eu achei a voz, que saia de um pequeno botão de rosa, que sorria para mim. Sobre o futuro, o abstrato, o intocável e  sobre a morte conversamos. Trocamos ideias e afagos, eu e a pequena planta. Ela me contava uma história de uma menina que desafiou o mundo.
    "Ela tinha lindos olhos grandes, olhos que não se acha em qualquer lugar. Olhos como os teus, Anne. Usava uma pulseira mágica no pulso que ela acreditava dar força e vida a ela. Um dia, ela encontrou num caminho qualquer um homem que lhe tirou os sonhos, depois um outro que lhe calou a boca e o último, levou sua pulseira. Ela ficou dias caída no chão, fraca, sem rumo certo. Sua pulseira tinha sido levada e isso era terrível. Mas houve um dia, que o Sol nasceu azul e o vento limpou seus olhos. Ela levantou e diante de seus joelhos machucados e pelo sangue que escorria de suas costas, ela jurou procurar uma outra fonte de vida e trocou sua arte pela sua felicidade...". Até que a curiosidade bateu em minha porta e eu a deixei entrar. "O que tinha pra me dar, antes que eu chegasse?", perguntei enquanto me levantava e sacudia o barro negro de minha roupa.
   A rosa por muitos minutos calou-se, já não me olhava mais. Parecia zangada pela interrupção. Ela me olhou debaixo para cima. Suas pétalas começaram a cair. Seu caule engrossava e começava a ganhar uma nova forma. Em uma bela moça se transformou. Cabelos longos, lisos, negros e uma pele cor de caramelo.
   Dois passos para trás evidenciaram minha surpresa e meu lágrimas nos olhos denunciaram meu medo. Eu queria correr, mas me sentia presa demais a curiosidade, acabei ficando.
   A moça olhou-me nos olhos, sorriu para mim. Tocou meu ombro esquerdo e meu quadril. Beijou meus lábios rapidamente. Na minha cabeça, o beijo durou mil anos. Mil anos em que ela me contava outras histórias, em que ela se apossava de meu corpo e alma.
   Soltou meus lábios e o cheiro de madeiras queimadas me abraçavam. Eu já não era criança mais e não lembrava como havia crescido tanto. Ganhei uma voz que afugenta o mal, a força de destruí-lo sutilmente, a leveza de um soldado. Ganhei uma mente lunática e a maldade de um ladrão.
  Eu usei todos os artifícios, todas as forças, todos os gritos... Mas, foi na calmaria e na estabilidade da terra, da areia, do mar, que encontrei minha paz.

peixes




Parece até pecado querer ficar embaixo de teus cabelos pretos.
Parece pecado lembrar de teus cachinhos encaracolando meus dedos.
Lembrar dos teus olhos cor-de-vinho parece ser errado aos olhos sóbrios que não podem de ver como eu.
Pensar em tuas sobrancelhas desenhadas parece sujo.

Mas que posso fazer se teu corpo me torna criança?
Que faço eu se teu sorriso me embriaga a alma?
Como posso não querer ouvir tua voz grave me falando blues ao pé do ouvido?

Eu guardei tantas primeiras vezes para você.
Minha primeira saudade, meu primeiro acorde em prosa, em verso, em mim.
Tinhamos nossas trocas de carta, troca de forças, trocas de pernas, trocas de ideias e soma de alma.

Hoje, parece pecado querer-te perto, sem pertencimento, sem possuir-te.
Parece pecado tocar tua cintura quando encontro você pra dizer 'oi'.

Parece errado ver postes amarelos, estrelas brancas, grama verde sem tua presença.
Parece errado ver pernas que não são tuas em minhas pernas.
Mãos que me arborizam e que não são tuas.
Boca que me beija e me bendiz que não é tua.

Fico eu então na dor da saudade e na alegria da enganação,
querendo teus olhos, querendo teu perdão.
Querendo cheiro, beijo, pele e mãos.
Fico fazendo minhas prosas e poesias,
encarnando outras pessoas para esquecer-te,
um dia.

Eu também

 

Marcamos um encontro num café, a fim de reavivarmos nossos antigos vícios, nosso antigo costume de conversar com uma xícara na mão.
Eu cheguei uma hora mais cedo, tamanha ansiedade, tamanho desejo de recontrá-la. Cheguei cedo para não ter a dúvida, não ficar pensando se ela já tinha ido embora. As horas se passaram e o que acabei pensando era que ela não viria ou não lembrara de nosso encontro. E não lembrar do nosso encontro seria o mesmo que não lembrar de mim, ou começar a ignorar nossas lembranças, nosso passado, logo, nosso futuro.
Meu coração canceriano já estava na boca e meu relógio quase marcava 20h.
Ela entrou, com uma lã cor de pele, cabelos desalinhadamente arrumados. O cheiro do ambiente cedeu lugar para seu perfume natural, agridoce, tal como cheiro de verdade. Já não tinha chave e nem amarras. Parecia um tanto mais leve que a última vez que nos vimos.
Por baixo da lã, como de costume, seu blue jeans e seu all star. Lábios vermelhos e um óculos de armação comum. Parecia mais nova que antes. Estranho como os ponteiros apressados do relógio fizeram um bem danado para ela. Outrora ameixa, agora pêssego é sua pele.
Ela senta na minha frente e a parede vermelha atrás dela parece encaixar tão bem. É incrível e inexplicável como o vermelho trata bem essa moça.
Bastou eu vê-la para que logo ouvisse nossa canção de ninar e em um segundo breve, minha mente foi levada para nossa dança de mortos, para nossa verdade, para nossa red house, para nossos caminhos tortuosos e embriagados.
Hoje ela não bebe, mas suas mãos ainda tem cheiro de vinho. Vinho, tão vermelho quanto negro agora são seus cabelos. Mais escuros, deixou sua pele mais clara e ressaltou seus olhos grandes.
Ficamos um tempo calados nos analisando e como é certo que Hendrix não era humano, ela estava ecrevendo mil contos em sua cabeça voluntariosa e lunática. Era no silêncio que escrevíamos em branco e nos líamos em silêncio.
Engraçado. Sei de todas as suas dores, mas deixei-me fechado o bastante para que sua luz não me tocasse tão intimamente. Medo de sua ação, medo de minha reação. Medo é um dos sintomas de paixão, segundo ela mesma. Ela pede o de sempre e eu a acompanho para termos algo que conversar. Inútil. Lá estava eu cheio de coisas pra dizer, mas nossos silêncios conversavam muito bem.
Eu não vi o tempo passar, as pessoas encherem e esvaziarem seus copos, o cigarro no cinzeiro apagar. Foi um segundo e uma eternidade olhando para ela.
Nesse meio tempo, ouvi músicas, dancei em algumas delas, cantei outras, dedilhei minha menina em mente, escrevi alguns livros, cai de um penhasco e deixei o mar beijar meus joelhos.
Ela sorrir com lábios secos com a cabeça inclinada. Me olha nos olhos, com olhos lacrimejados.
Ela beija minha testa e sai.
Eu em mente digo: Eu também.

you've got me in your pocket



São quase cinco e eu não consigo parar de olhar seus olhos castanhos. Gosto de ver seu cabelo liso, negro fazendo curvas sutis na nuca e suas costas flexionadas. Vem o sono e a dor de cabeça tentarem me alertar que já é hora de parar e eu nego seus caprichos, deixando o meu livre desejo dominar. E assim faço, enquanto você se desfaz em meus lençóis e se refaz em minha boca.

São quase cinco, acabou os cigarros e o café, mas não consigo parar de olhar teus lábios cor de goiaba. Gosto do gosto. Mistura o cigarro, o café, a língua. Mais úteis que algemas, me prenderam alma, corpo e coração em ti, desde a primeira vez que os toquei com os olhos. Vem o juízo e a razão tentar me alertar que é hora de pegar leve e eu nego seus pedidos, deixando minha cobiça me dominar. Eu bebo de tua boca como Alice, e me reduzo pra caber em teu seio.

Já são mais de cinco, e decidi passar a noite acordada pra te olhar se emoldurando em minha mente. Quero ver os poucos minutos que o Sol vem te abraçar na cama e beijar tua face. Quero ver tua pele vermelha brilhando à luz da estrela gorda. Quero ver de perto como quando deitamos com corpo colado. Vem o cansaço e ador nas costas alertarem que eu preciso parar de te olhar tanto, mas finjo que não ouço minhas costas e vou deixando o anseio me levar.

Já nem sei que horas são. Creio que seja a ultima hora antes do Sol acordar. Eu vou te olhando, e te vejo levantar. Com meus olhos vou seguindo seus passinhos tortuosos... Você levanta e volta, me pedindo pra deitar. Aí nego meu instinto e escolho ficar.

Carta ao medo


Pegue suas coisas, arrume suas malas. Hoje é o dia de dar adeus. Guarde na sua bolsa nossos velhos retratos, nossas velhas lembranças. Já não cabe mais um "nós", e fique bem com isso. Vamos, apresse-se em arrumar suas caixas!
Depois das palavras de hoje, eu quero que me solte de seus braços. Vá embora. Não preciso mais que me acorde no meio da noite, ou que me faça companhia como se fosse uma sombra minha. Leve teus livros, cartas, vinis, roupas de meu quarto. Já não há lugar pra você.
Vá em silêncio, por favor, sem escândalo, sem estardalhaço, sem versos ou prosas, sabe que não gosto. Em respeito ao longo tempo que ficamos juntos, por favor, vá em silêncio.
Não que eu me arrependa, ou que sinta muito, mas tente ser você em outro lugar. Meu peito já não é sua casa, não mais, não depois de muito tempo. Solte meus joelhos, não há volta para nós dois, não há um "capítulo dois". Leve sua inútil presença de minha vida.
Hoje eu já não preciso mais de você. Hoje eu já não quero te sentir. Hoje é dia de dar adeus à você, que tanto mal me fez e que hoje já não pode mais.
Adeus, medo. Adeus.

quereres

Eu quero estar em você,
Onde ninguém mais esteve, onde ninguém estará.
Quero ir no inabitável do teu ser
E fumar um dou dois cigarros com o desconhecido que habita em ti.

Ir, sem tempo de viagem ou hora pra voltar.
Sem previsão de retorno, ir e ficar.
Ficar, encontrando peças novas teu quebra-cabeça.
Ficar ouvindo tuas velhas histórias e teus novos vinis.

Quero ser, como se fosse de tua casa,
Como se tivesse nascido de ti,
Ainda que com gosto de novidade,
Ainda que com cheiro do novo.

Quero ter-te todas as vezes que abrir mão de ti.
Quero estar, todas as vezes que o meu trem chegar.

No fim do dia, antes da noite, lembrar de teu corpo laranja deitado em mim.
Na noite, no fim da tarde, lembrar de tuas mãos me desenhando no escuro.
De manhã, no raiar de um novo Sol azul, chorar por todas as suas mentiras.

Shh

Ela estava com olhos contornados do tom mais escuro do marrom e, esse contorno, salientava o formato amendoado de seus olhos. Grandes, pulsantes. As veias ramificavam o vermelho para o branco de seus olhos, parecia que iam explodir ao mesmo tempo que arborizavam suavemente o olhar. As pupilas, dilatadas e grandes... Enormes, como nunca vi. As sobrancelhas trepidavam enquanto ela flexionava a testa olhando para o Sol.
Olhos castanhos que ganham uma nova tonalidade com o Sol do fim de tarde. Ela coloca seus óculos marrons, como sempre foi, e me olha, daquele jeito como quem grita os pensamentos. É constrangedor olhar seu rosto sem expressão e sentir que ele nos fala tanto. "Chega queima, chega entorpece, chega endoida", como Chico diria.
A grama tão dourada, tão vivida... Tão diferente de sua face mórbida. Nos dedos, anéis pesados e nos braços o seu relógio, que há muito não usava. Na boca um novo vermelho... Nem ameixa e nem vinho. Como não podia deixar de ser, uma jaqueta blue lhe cobre os ombros. Vestido branco e pés descalços. Tão engraçado como a tristeza combina com ela. Tão engraçado como ela fica linda com lágrimas nos olhos.
Mesmo que sentada de frente para o Sol, a sua luz e calor não parecia tocá-la nem por um segundo. Todas as palavras que me disse foram claras e sucintas.

"Todas as mentiras contadas, todas as verdades escondidas me afastam gradativamente de você. A confiança quebrada, o amor desperdiçado e a paixão fingida não têm perdão, não têm volta. Hoje eu vou embora, e acredito que você pode sentir isso pela forma que olho pra você. Foram tapas, socos, sangue demais que foram tirados de mim, para que eu pudesse te dar um pouco do meu ser, um pouco do meu melhor. No entanto, foi fácil rir de mim na mesa de bar com carne entre os dentes e álcool na garganta. Agora vou-me. Volto eu para meu buraco, de onde nenhum caranguejo deveria se dar o luxo de sair."

Ela disse adeus.
Era só um botão, um gordo botão vermelho.
Caule liso, verde, forte sem ranhuras.
Mas veio o vento, veio a chuva, veio a seca.
E a seca não foi embora, e chuva fez casa, e o vento não parou.
Era só um botão, mas já virara rosa.
Bela rosa com gordas pétalas vermelhas.
Gordas. Vermelhas. Múltiplas.
O tempo estava aberto, correndo.
Veio a chuva, a chuva e um incendio.
A rosa foi se enrijecendo.
O caule coberto de espinhos e poucas pétalas sobraram.
Tão fragilizada, tão machucada.
Já não pode aguentar.
Só resistir.

I promise you


Por fora, toda a beleza e fascinação.
Por fora a simplicidade beija a testa, deixa a marca do batom.
Na casca, sorrisos cheios de luz tranquiliza todas as dores.
Na capa, a igualdade e temperança transformam falas em cortejos cheios de vida.
Por fora os olhos calmos refletem a parte mais azul do céu.
Abraços para acalentar, há cheiro pra viciar, há silêncio, ecos, paciência e graça.
Por dentro, a mentira cheira podridão.
Deus! Onde escolhi me abrigar?!

The Pretender



Eu finjo ter todos os problemas do mundo. Finjo carregar os problemas do mundo. Finjo que os sinto dentro de mim e finjo que a qualquer momento eles quebrarão a minha janela e destruirão meu castelo. Mas basta você passar por mim com risos e histórias loucas com aroma de mil figueiras para a leveza me invadir com a mesma ousadia que o vento toca as folhas das mais lindas árvores.

Eu finjo ter as palavras que os outros querem ouvir. Finjo ser ponte, ser fonte, ser forte. Finjo ser o leão que não se intimida, finjo ser o escudo pronto pra batalha. Então tuas mãos envolvem meu corpo e me encaixo em teus braços tão bem, como se já os visitasse há muito. E teu peito me serve como abrigo, como esconderijo, como um campo sem fim onde posso correr sem cansar, onde a paz me invade com a força que o vento dobra o mar ao seu prazer.

E finjo máscaras e saberes. Finjo experiências e finjo lembranças. Finjo ter pra onde voltar. Finjo ter palavras pra falar. Finjo ser Paulo e finjo enfrentar deuses de lata. Finjo ter o mundo nas mãos como se sempre fosse meu. Aí teus olhos provam pra mim que nada faria sentido se eu não tivesse onde repousar uma mente tão fantasiosa. Teus olhos que me iluminam o caminho e  não deixam que eu pise em falso. Quando todo o corredor de portas se fecha e já não tenho pra onde ir, vem teu amor me abraçar com a doçura que o vento limpa a grama de folhas secas.

E por fim, quando tudo acontece ao mesmo tempo, quando os gigantes aparecem e as portas estão fechadas, quando não há máscaras suficientes para me esconder, quando as palavras e frases feitas já me cansaram, quando eu não tenho pra onde voltar... Basta-me teu beijo, teu cheiro... Basta isso pra que a coragem toque uma música tão linda, tão insana, tão calma, tão macia, tão cor-de-dia, como o vento que balança seus cabelos no carro.

Aí eu já não finjo. Só acredito.

Ode a Leonor

Basta que eu olhe para esta casa para que me bata a incerteza de ser bem vinda. A casa ainda tem o perfume e sorriso dela, você ainda olha os umbrais da porta com aquele tom de foto nostálgica, ora lomo, ora polaroid. E eu sorrio meio-sorriso. Eu olho teu peito e só enxergo o meu único abrigo, minha única saída, quando o mundo me tranca, quando os gigantes invadem meu lar, quando todos se vão. Mas logo, sem demora, me sinto intrusa no seu jardim. Uma rosa no seu cerrado. Uma ponta de cigarro na capa do livro. São loucuras demais, são problemas demais, são lembranças.
Basta que eu olhe para essa casa, para que tenha certeza que isso não me pertence, nem livremente. É como sonhar sonhos de outros, ou parafrasear filósofos, músicos... Parafrasear. Achei palavras que pareciam tão minhas por um minuto, enquanto ouvia o solo mais lindo. Depois, na segunda volta, vi suas palavras como faca de dois gumes.
Agora, olhe pra mim... Só um pouco, só pra mim. Vamos ficar alguns minutos sem falar... O silêncio é o eco que preciso agora, agora que estou indo embora. Não quero ultimo beijo. Quero teu último olhar, quero o primeiro olhar que você me olha, sem querer outra vida, sem querer outra canção, sem querer outro copo. Seja meu, só meu, enquanto eu me desfaço de você. Pra que eu sinta que não foi em vão, que foi mera coincidencia, que foi um acaso.

Acerto de Contas

 

Hey!


        Vem cá, filho duma puta! Veja o que tenho pra você. Eu tenho uma mão com dedos quebrados. São lindos dedos que poderiam carregar lindos anéis, mas resolvi quebrá-los enquanto você quebrava meu corpo, comia meu âmago e tirava minha infância a força, lembra disso. "Eles não vão saber", "É pra doer mesmo", "Fica quieta"... Lembra disso? Eu espero que lembre. Aqui estão minhas mãos quebradas, minhas cicatrizes. Aqui também está minha alegria, lembra quando foi embora? Lembra que com marcas por todo o corpo você sorria e tocava sua guitarra, olhava nos meus olhos e sorria. Lembra das marcas? Do roxo, do vermelho, dos tons de cinza que você tatuou em mim? São seus, leve-os, enfie-os no seu cu.
        Vem cá, desgraçado! Quero agradecer você por ter me seduzido com teus olhos amarelos, me comido até que tivesse sangue nos olhos, secado meu corpo até os ossos. Agradeço, desgraçado, por ter tomado minha adolescência, por ter me prendido, por me fazer ficar acordada, por ter usado e destruir meu corpo. Lembra disso? Eu espero que esse 38 refresque sua memória. Lembra: unhas quebradas, garganta estourada, mãos escorrendo no seu portão implorando o mínimo de atenção, 36 quilos... "Vem aqui agora", "Sai daqui"... E o glorioso: "O que você vai fazer agora?". Espero que se lembre das marcas nas minhas costas. É fácil inventar histórias, dizer que foi o tempo que causou exaustão, mas lembro de me desfalecer em suas mãos, implorar cuidado, implorar pra você me deixar ir embora. Meu corpo já não aguentava mais. E meu braço? A cicatriz eu tenho até hoje. Deixo aqui pra você minha confiança, meu amor-próprio. Espero que eles te espanquem até que seus dentes desçam por sua garganta, até sua cabeça ficar num estado de não conseguirem identificar teu rosto, só até seus olhos rolarem no asfalto.
        Agora você, vem cá. Não existe palavra pra te definir, nem sua mãe soube fazer. Ou melhor, nem quis fazer. Vem cá, quero que você lembre tudo o que fez. Lembra das noites que me deixou acordada? Eu espero que se lembre de todas as vagabundas que comeu enquanto estava comigo. Espero que lembre todas as vezes que menosprezou, denegriu, sujou... A-mal-di-ço-ou meu nome. Quero que se lembre da sua covardia. Quero que lembre de suas mãos no meu pescoço e quero que lembre da sua mão batendo na minha cara. Legal, divertido, todos os seus amigos já tinham saído. Quero que se lembre de mim no chão, depois que você me derrubou. "Eles fizeram isso por que você merece, é uma vagabunda, piranha..." Eu me lembro disso, e você? Parece que esqueceu. Parece que esqueceu que levou minha força, minha auto-estima... Eu quero que você lembre disso enquanto engole o cano dessa ponto40. Eu quero que sejam seus últimos pensamentos. E quero que chore, vou usar as mesmas palavras que você me deu enquanto minha boca se rasgava em cortes: "Olha minha dó por você..." Pegue o que levou de mim e engula. Não há arma que te pare. A vida vai se encarregar de você.

E agora? Já têm minhas cicatrizes penduradas no mural do orgulho, já tomaram a capacidade de acreditar. O que mais vocês querem? O que mais tem pra arrancar de mim?