peixes




Parece até pecado querer ficar embaixo de teus cabelos pretos.
Parece pecado lembrar de teus cachinhos encaracolando meus dedos.
Lembrar dos teus olhos cor-de-vinho parece ser errado aos olhos sóbrios que não podem de ver como eu.
Pensar em tuas sobrancelhas desenhadas parece sujo.

Mas que posso fazer se teu corpo me torna criança?
Que faço eu se teu sorriso me embriaga a alma?
Como posso não querer ouvir tua voz grave me falando blues ao pé do ouvido?

Eu guardei tantas primeiras vezes para você.
Minha primeira saudade, meu primeiro acorde em prosa, em verso, em mim.
Tinhamos nossas trocas de carta, troca de forças, trocas de pernas, trocas de ideias e soma de alma.

Hoje, parece pecado querer-te perto, sem pertencimento, sem possuir-te.
Parece pecado tocar tua cintura quando encontro você pra dizer 'oi'.

Parece errado ver postes amarelos, estrelas brancas, grama verde sem tua presença.
Parece errado ver pernas que não são tuas em minhas pernas.
Mãos que me arborizam e que não são tuas.
Boca que me beija e me bendiz que não é tua.

Fico eu então na dor da saudade e na alegria da enganação,
querendo teus olhos, querendo teu perdão.
Querendo cheiro, beijo, pele e mãos.
Fico fazendo minhas prosas e poesias,
encarnando outras pessoas para esquecer-te,
um dia.

Eu também

 

Marcamos um encontro num café, a fim de reavivarmos nossos antigos vícios, nosso antigo costume de conversar com uma xícara na mão.
Eu cheguei uma hora mais cedo, tamanha ansiedade, tamanho desejo de recontrá-la. Cheguei cedo para não ter a dúvida, não ficar pensando se ela já tinha ido embora. As horas se passaram e o que acabei pensando era que ela não viria ou não lembrara de nosso encontro. E não lembrar do nosso encontro seria o mesmo que não lembrar de mim, ou começar a ignorar nossas lembranças, nosso passado, logo, nosso futuro.
Meu coração canceriano já estava na boca e meu relógio quase marcava 20h.
Ela entrou, com uma lã cor de pele, cabelos desalinhadamente arrumados. O cheiro do ambiente cedeu lugar para seu perfume natural, agridoce, tal como cheiro de verdade. Já não tinha chave e nem amarras. Parecia um tanto mais leve que a última vez que nos vimos.
Por baixo da lã, como de costume, seu blue jeans e seu all star. Lábios vermelhos e um óculos de armação comum. Parecia mais nova que antes. Estranho como os ponteiros apressados do relógio fizeram um bem danado para ela. Outrora ameixa, agora pêssego é sua pele.
Ela senta na minha frente e a parede vermelha atrás dela parece encaixar tão bem. É incrível e inexplicável como o vermelho trata bem essa moça.
Bastou eu vê-la para que logo ouvisse nossa canção de ninar e em um segundo breve, minha mente foi levada para nossa dança de mortos, para nossa verdade, para nossa red house, para nossos caminhos tortuosos e embriagados.
Hoje ela não bebe, mas suas mãos ainda tem cheiro de vinho. Vinho, tão vermelho quanto negro agora são seus cabelos. Mais escuros, deixou sua pele mais clara e ressaltou seus olhos grandes.
Ficamos um tempo calados nos analisando e como é certo que Hendrix não era humano, ela estava ecrevendo mil contos em sua cabeça voluntariosa e lunática. Era no silêncio que escrevíamos em branco e nos líamos em silêncio.
Engraçado. Sei de todas as suas dores, mas deixei-me fechado o bastante para que sua luz não me tocasse tão intimamente. Medo de sua ação, medo de minha reação. Medo é um dos sintomas de paixão, segundo ela mesma. Ela pede o de sempre e eu a acompanho para termos algo que conversar. Inútil. Lá estava eu cheio de coisas pra dizer, mas nossos silêncios conversavam muito bem.
Eu não vi o tempo passar, as pessoas encherem e esvaziarem seus copos, o cigarro no cinzeiro apagar. Foi um segundo e uma eternidade olhando para ela.
Nesse meio tempo, ouvi músicas, dancei em algumas delas, cantei outras, dedilhei minha menina em mente, escrevi alguns livros, cai de um penhasco e deixei o mar beijar meus joelhos.
Ela sorrir com lábios secos com a cabeça inclinada. Me olha nos olhos, com olhos lacrimejados.
Ela beija minha testa e sai.
Eu em mente digo: Eu também.