paleta

Eunice tinha a pele clara e olhos negros. Um contraste que só era nítido quando pintava aquelas duas bolas da cor de fundo de poço. Eunice tinha pernas longas e pés finos, mas só era possível perceber quando o seu vestido encontrava com o vento e os dois se amassavam em um romance de chocar os homens de família. Aquela garota não tinha muito com a vida, não tinha muitas pessoas para dar satisfações, não tinha muitas histórias boas de se contar.

Todos os dias, Eunice mantinha uma rotina desorganizada. A única certeza era de que algo extraordinário iria acontecer, e isso podia ser ela dançando embaixo dos pingos de chuva ou quando ela entrava no trem cantando em tons altos. Era de espantar as moças requintadas das famílias nobres da cidade.

Seus cabelos tinham uma textura que só os deuses poderiam descrever com perfeição, assim como o desenho que contornava sua cintura fina, quase de cumbuca. Um sotaque e uma dificuldade em pronunciar palavras grandes. Ela expressava-se mais com trechos de poetas - que demorara anos para compreender, decorar e aplica-los em diálogos. Parecia confundir os sábios da sociedade.

Todo o mundo girava da dobrinha do braço de Eunice, que tinha a alma livre em um corpo acorrentado ao alto mastro dos bons padrões. Levada, ela dançava enquanto andava. Seus quadris pareciam saber o nome de todos os homens casados da região. Tranquila e pintada em aquarela, Eunice sorria para dá bom dia e dizia seu nome com bochechas rosadas.

A morena era como quando se pinta fora do traço. A diferença causava curiosidade e ela era como flor que abre uma pétala de cada vez no calor. Olhos de pôr-do-sol sem nenhuma culpa ou pesar.

Várias primaveras foram se passando. Vários verões morreram. Algo mudou na vida daquela jovem. Sem explicação, sua vida começou a apagar sua felicidade. Eunice guardou na pele todos as marcas desses finais. Já não aparecia com seus vestidos e nem dançava sua música. No meio da multidão atrasada não era mais possível encontra-la com facilidade. Olha o relógio, pede um café em copinhos de plástico e corre.

Nem azul: índigo era a cor de sua boca quando dava 'olá' para o padeiro de manhã. As curvas agora estavam desenhadas à régua e borracha. Acordar, sentar-se na cama, ajeitar os cabelos e mentalizar coisas boas para ter coragem para enfrentar o mundo. Isso era a sua nova rotina. Todos os dias nos bares, segurando terço e rezando para conseguir levantar-se no final da garrafa e chegar em casa.

Agora, quando andava na rua, a decadência lhe era nítida. Como cão cansado de correr atrás dos carros, ela seguia com seu corpo encharcado de água ácida. Os olhos negros escorriam nas bochechas e o corpo violado já não era violão. Antes o vento, agora a água tinha uma briga ferrenha com suas saias e as colava nas coxas claras de Eunice.

Já não sabia muito como falar, nem o álcool deixou que seus poetas falassem por ela. O silêncio amargo com cheiro de hálito matinal era a sua característica. A observação deu lugar a interação e o mundo a consumiu. Passar os dias punindo-se para agradar os que sempre, e sempre, a condenaram como uma mulher má.

Os amigos a acham genial e apreciam como a tristeza lhe cai bem. É um quadro tão lindo de se vê. Na rua, com seus vestidos pretos, ela deitava no chão, chutava as caixas e todos aplaudiam. Um palhaço no palco não seria melhor intérprete de tanta desgraça.

Mas em casa, após tirar as máscaras, deixava seu corpo cair sobre a cama e sempre se esquecia como se cobria. Custava umas duas horas para dormir e sempre, sempre, pedia antes de cair no sono, um abraço.