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Ela passou varios 365 dias criando para si mesma uma personalidade diferente, uma que não seja tão fraca quanto ela já é. Para isso, carteiras de cigarros, copos plásticos de café com leite, garrafas de bebidas, caixas inteiras de canetas fizeram um tapete enorme para o que ela estava determinada a traçar preguiçosamente.

Com o tempo, sua risada mudou e seu cabelo também. Não muda os seus olhos grandes e redondos, nem sua língua afiada. No entanto, em plurais maneiras ela permanece a mesma alma mole por trás de uma forte carapaça, à procura do peito que a console, do buraco que a abrigue, do sonho seja tão forte e intenso para que ela acorde.

Atrás dela, os erros e acertos foram guardados de forma segura para lembrá-la de como seguir. Quebrando o seu corpo, ela aprendeu a lutar. Quebrando o seu coração, ela aprendeu a escrever. Quebrando sua coragem, ela aprendeu a correr. Quebrando seu ego, ela aprendeu a crescer.

A capacidade que ela tem de acordar e colocar uma nova camiseta, calçar novos sapatos e viver um novo dia é propocionalmente grande a sua vontade de morrer instaneamente ao adormecer toda noite. Para equilibrar o jogo, fica na cama ainda um pouco mais torcendo para que crie um cancer, para que sua respiração acelere até parar, alguma coisa que lhe impeça de pegar o ônibus, trabalhar em cima de seus sonhos, correr pelo mundo sem dar uma ligação.

Enjaulou-se devagar dentro de sua própria cabeça. Músicas, cartas, cheiros que não quer esquecer e não tem ânimo para abraçá-los. Pendurou na sua casa todas as suas vitórias e medos para lembrar que uma coisa só vem com a outra.

Finge vícios que não quer ter. Finge dores que não quer sentir. Perto disso, os problemas da humanidade, o preconceito, a pobreza e a diferença social ganham proporções tão pífias que tornam-se bilocas para serem jogadas numa rua qualquer sem asfalto.

Escreve para não ter que gritar e grita para não ter que explicar. O grito choca e faz com que se preocupe o que fazer depois do grito e não com o que ele realmente quis dizer. Então grita com as paredes, joga pragas nos que atropelam seu caminho, xinga os que não podem ouvir, mas sussurra suas angústia dentro de sua boca em forma de músicas.

Persegue no seu destalento de fazer as coisas firmemente. Destroi em dias, em palavras e em simples olhares o que custou vidas e corações para ser construido.

Prefere o não-perdão à opção de esquecer por completo tudo o que foi feito. Já ouvi falar que ela tem essa mania de transformar tudo o que toca em bosta e de aprisionar dentro de si grande parte de todos os que ela resolve se aproximar.

Criou e alimentou o medo de chuva para servir de desculpa para que saia e se molhe na rua. Criou o medo de ir pra rua para se manter seca todos os dias, pingando suor no próprio travesseiro, amargando o gosto de sangue na boca.

Amá-la é algo lindo, puro, eterno e também assinar o próprio atestado de óbito. "Morto por falta de amor".

Elle, R.


Nosso amor sempre foi um blues, daqueles que se cantam sentados batendo as solas dos pés no chão e de olhos fechados. Quantas poesias criamos nós durante nossa infância, quantas dores nós acumulamos em nossa adolescência e quanto medo sustentamos na nossa velhice? Éramos nós tão livres, tão leves, tão grandes e tão fortes, mas todos os nossos tesouros escorreram entre os dedos de nossas mãos no momento em que elas já não se entrelaçavam.

E o asfalto nunca foi tão limpo e nem a chuva lembra o nosso nome. As estrelas já não brilham, meu amor, não mais. Fizemos tanta força para que nosso pequeno e inocente querer se desfizesse sempre que a vida nos provava por a+b que nossos caminhos não deveriam brincar juntos.

Mas quando abraço você, assim quando ninguém pode me ver ou ouvir, nos poucos segundos eu tenho a sensação que voltei para o meu lar, para continuar aquela conversa que nunca terminamos. É estranho, que temos a maldição de morrer quando nos aproximamos.

Um dia a mais e meus olhos choram hidrantes de tristeza. Um ano a menos, e meu corpo se esmorece e estremece quando penso no éramos, no que fomos. E finjo que não percebo que as pessoas falam de você e finjo não sentir saudade quando faço piadas das suas antigas confusões.

Eu só queria te contar tantas coisas, tantos mundos de palavras que existem em mim. Eu só queria te contar, qualquer bobagem que dê o tempo certo para que você diga que não tem explicação.

Mas nosso amor sempre foi um blues, meu amor. E como ela dizia em voz de choro, quando uma mulher encontra o blues, ela pega o trem e vai embora, quando um homem conhece o blues, ele cai sentado e chora.

Me dá um medo.
Que medo.