torço para que teus longos cílios me cubram nas noites frias dessa Brasília
me converto e rezo para que tua barba me aqueça quando o gelo entrar pela porta que ficou aberta
suplico que o peso que ainda resta e segura meus pés passe para que meu corpo seja leve e vivo nas tuas mãos
quero que me devore como quem come pêra suculenta depois da última ponta e quero que me toque como se eu fosse a velha guitarra no canto da parede do seu quarto
espero que a distância entre nossos lábios seja apenas o feixe de luz que evidencia a quente fumaça que sai da nossa boca
e que haja luz contra o vidro e que haja escuridão entre nossos corpos e que seja. que apenas seja.

o que a gente podia ser

busco dentro de mim até mesmo fé para poder encontrar a hora certa do dia para respirar
ando tentando encontrar não só no tempo, mas no espaço, o que deixou o canto da parede vazio
encho o cinzeiro todos os dias e já começo a recitar o manual nada prático do desapego
procuro em mim o peso morto que não me deixa mais pensar e agir como antes
ele me diz que eu sei o que aconteceu, mas ainda duvido dessa verdade
questiono dentro de minha cabeça o que defez meu coração em dois e como isso se deu
ora eu era forte e inabalável
outrora eu era apenas leve e jovem
há pouco eu era apenas velha e cinza
pergunto se foi eu ou o tempo que passou por baixo da fumaça densa do meu cigarro
não entendo como perdeu-se em gavetas vazias o meu corpo, minha alma e meu espírito
nas mãos que eram as únicas a tomar meu ser eu me despi e me machuquei
eu cai nos espaços vazios dos dedos que amavam ostentar anéis de prata
fui derrubada pela língua que esqueceu-se de mim quando a neguei
bombardeada fui para os olhos de brasa quente quando esses mesmos viraram cinzas
seria uma vida toda de céu, mar, casa
eu estava acostumada para isso
acreditava que nenhuma fatalidade enfraqueceria dez dedos entrelaçados na cama
o que vejo em mim é uma grande ferida e a certeza de que só dói porque foi amor.

vinteeseisemeio

Era tão familiar quanto estranho onde nos encontramos. O calor externo que já chegava aos trinta graus não dava nem de ombros com a temperatura do meu corpo. Espasmos, dificuldade na fala, muitas passadas de mão no cabelo me evidenciavam que seria uma luta travada comigo mesmo para controlar a vontade de silenciosamente pedir um beijo.

Eu via os ossinhos do colo na camiseta decotada branca e já me via acrescentando línguas e beijos à minha vontade e à tua falta de medo. Pensava comigo se pudera existir qualquer coisa - física ou espiritual - que já me deixasse em estado de cachoeira em dias de cheia. Me via segurando meu próprio corpo, controlando até mesmo a respiração para deter qualquer distração que me deixe tirar sua blusa.

Os olhares, as pronúncias, o caos e a forma de se sentar provoca a inocente negociação com a consciência limpa. Eu te olho quase de perto e te mastigo em minhas pernas toda vez que sorrir pra mim como quem não tem horas para dormir. À sua maneira, me dá a sensação de que também não tenho hora de dormir.

Como quem morde uma fruta suculenta, mordo teus lábios apertando as tuas bochechas e te puxando para meu quadril. Chego a ver meus dedos enrolados no seu cabelo e o brilho do rastro de suor nas suas têmporas. Tremo quando meus lábios tentam te enganar que não há desejo.

ensaio

Ela voltou e suas unhas em mãos frias arrepiava minhas costelas e pernas enquanto esquentavam meu corpo. A sensação da noite fria e meu corpo em chamas evidenciava que o tempo que ficamos longe nos fez bem. Seus olhos cor de âmbar fria tocavam-me como lava quente nos sentidos, mas morriam congelada na minha pele vermelha. Meus lábios antes travadas para esse beijo abrem-se naturalmente quando a respiração do meu ofega seu nome.

amem

que haja uma escuridão tão intensa entre nós que para te ver tenha que tocar tua barriga.
que seja rápido como um sopro latino e minha boca, mas que sirva para encher meus pulmões de flores.
que haja língua nessa boca minha e que não seja a que carrego.
que nossas conversas se encham de linhas e seus sorrisos terminem no canto de minha boca.

nothing else matters

Tantos anos depois, lá está ela com palavras nos dedos, tomando café e fumando cigarros, escrevendo sobre amores que tragicamente se iniciaram. Cassia dizia que nos queria bem e neste momento, é o que importa. Ela pressiona os lábios, um no outro, para manter o tom de vinho que carrega na boa. A música que passa em sua mente pede 80km por hora e isso, na verdade, é o que importa.

Não se pode ver, como antes, como está seu coração. Seus olhos castanhos cor-de-vinho eram grandes e expressava tudo o que a boca não falava. Eu perguntava para ela onde estava o seu sorriso, como quem pergunta onde perdeu as chaves sentindo o tilintar do metal nos bolsos, como quem está com a caneta presa atrás da orelha e pergunta com o que vai desenhar.

Eu lembro que ela andava contando passos por aí, com um leve cambaleado no andar. Eu lembro que ela falava aos sete ventos sobre si para os que não conhecia e se calava diante de mim, que a via por completo. Eu lembro dela ligando para minha casa dizendo que estava conversando comigo dentro do guarda-roupa, tamanho embaraço em ouvir minha voz.

O sentimento que guardamos um para o outro é a saudade, o que para nós significa o amor mais puro que poderia existir. A saudade do que vivemos e, especialmente, a falta do que jamais encontramos.

Mas hoje ela está ali, há uns 20 metros dos meus olhos, do outro lado da rua. Ela tem um novo corte de cabelo que alargou os seus cachos deixando-os entre o ombro e o pescoço. Velhos jeans azuis que colam em suas pernas finas e o all star que fez história entre nós. Uma camisa de veludo escuro e sobrancelhas apertadas, para dar um ar de seriedade. Mas isso não importa.

Eu me questiono se nós marcassemos de nos ver, por aí, em qualquer lugar, para tomar a bebida favorita dela e falarmos de nós, jamais nos encontrariamos. Assim quer a vida, que nos coloca frente a frente em especiais ocasiões, em que o encontro é marcado pelo o que nos completa e nos une até hoje: a música. Isso é o que interessa.

Ferimos a pele de nossos corpos com coisas sobre nós, coisas sobre os dias em que crescemos junto e, principalmente, pelos dias que nem nos olhavámos entre grades e corredores. Isso é o que importa.

Ela coloca os cabelos atrás da orelha para tirar o incomodo do cachos no rosto e sorri com o canto da boca quando me olha. Isso é o que importa.